MYSTERIUM ESSE REVELANDUM por Marie Christiane Seiferth – 2012, por Fábio Magalhães – 2021, por Magnólia Costa

Mysterium esse revelandum por Magnólia Costa
Mistério a ser revelado – A instalação de Elizabeth Dorazio Mysterium esse revelandum é uma coluna feita com lâminas de polipropileno de tons azulados, recortadas e desenhadas a mão. A coluna vai do teto ao chão em referência ao conceito de axis mundi introduzido pelo mitólogo Mircea Eliade, que mapeou representações simbólicas da ligação entre céu e terra, espiritual e material em diversas culturas. No budismo tibetano, essa ligação é simbolizada por um elemento natural (o Monte Kailash) e tem correlatos em tradições tão distintas quanto a hinduísta (o Monte Mehru) e a aborígene, esta manifesta em regiões muito distantes entre si, como a África (o Kilimanjaro), a Oceania (o Urulu) e a América do Sul (o Salkantay). Há milhares de anos, a conexão entre o sensível e o inteligível é simbolizada por construções monumentais como pirâmides e zigurates, mais recentemente, por elementos arquitetônicos funcionais como torres e minaretes. Na tradição judaico-cristã, o trânsito entre a terra e o cosmo é representado na imagem da Escada de Jacó, que liga o imemorial ao eterno. A coluna é um ícone que as sociedades modernas destituíram do poder mágico que lhe foi atribuído no passado. O ícone perdeu a magia, mas investiu-se de uma força arquetípica universal. Esta, inclusive, motivou Constantin Brancusi (Infinite Column, 1935) a inseri-lo no contexto artístico, no que foi seguido por Anish Kapoor (Ascension, 2011; Cloud Column, 2018), que consolidou a coluna como presença icônica na arte contemporânea. Com Mysterium esse revelandum, Elizabeth Dorazio enfatiza a força arquetípica da coluna por meio de imagens como a da dupla hélice que estrutura o DNA, molécula biológica icônica que guarda o segredo da origem. Dorazio desenha sobre lâminas de polipropileno, material derivado do petróleo que evoca tanto a vida extinta há milhões de anos quanto a revolução tecnológica do século 20, hoje convertida em ameaça ao futuro da humanidade e do planeta. Nesta instalação, Dorazio arranja as lâminas do teto ao chão em sentido descendente, assemelhando a coluna a uma queda d’água, elemento purificador associado à transcendência em diversas culturas ao redor do mundo. Executada com notável minúcia em material muito leve, a monumental Mysterium esse revelandum adequa-se conceitual e visualmente à arquitetura do Louvre Abu Dhabi, cuja leveza é valorizada pela chuva de luz que atravessa a cúpula rendilhada. Sendo ao mesmo tempo impactante e serena, a instalação de Elizabeth Dorazio suscita muitas sensações. Recursos de iluminação fazem a coluna parecer densa à distância, mas essa ilusão se desfaz gradativamente na aproximação da obra, evidenciando desenhos de fósseis, micro-organismos e moléculas grafados nas lâminas translúcidas que a perfazem. Com este ícone contemporâneo, Dorazio dá à ciência o lugar que outrora foi da magia, reafirmando que os seres humanos têm uma infinidade de mistérios a desvelar em sua breve passagem pela vida.

Magnólia Costa
PhD, membro do Icom, crítica de arte, curadora, fundadora da plataforma de educação a distância Magnólia Costa.Art

Mysterium esse revelandum por Fábio Magalhães
O sopro é a energia do movimento e, também, a atmosfera que inspira a artista. Movimento é vida, vida que se transforma no espaço e no tempo. Na poética visual de Elizabeth Dorazio é metáfora de sonho e memória. Para Elizabeth a arte não é apenas a forma de representar o mundo, mas também uma forma afetiva de estar no mundo. Portanto, o sentido de território para a artista é “estar dentro”. Pertencer a um território é estar misturada, imbricada com as coisas do lugar.
“Mysterium Esse Revelandum” é uma obra realizada em folhas de polipropileno nas cores oceânicas, recortadas a mão e depois costuradas com um fio de nylon que vão caindo livremente em cascata para criar uma massa de transparências que provoca a sensação de queda d’agua. Sobre uma forma de respingo na cor purpura, que cobre o pavimento, a artista acrescentou pequenas gotículas que são espalhadas, soltas. Pendem da composição recortes transparentes em correntes, sugerindo a cadeia do DNA e fragmentos de raio x recortados na forma de gota. Estruturas orgânicas e micro aquáticas foram aleatoriamente desenhadas. A obra possui uma iluminação própria, construída pela artista com o objetivo de enfatizar as transparências e acentuar o jogo de revelações e ocultamentos. “Trabalho com camadas, assim como um geólogo trabalha com camadas. Ou ainda como um anatomista trabalha com camadas. Minhas camadas se desprendem para revelar, elas se sobrepõem, narrando novas formações. Elas caem em cascatas, orbitam, se dissipam. Meu trabalho nasce como fragmentos — pedaços dispares que se interpenetram, são costurados, colados, quebrados, pendurados, amarrados, atados ou até fixados com spray para cabelos. Me interesso por camadas além da mera técnica artística, para mim, camadas são como memórias acumuladas, como a história é feita, ou como o tempo é formado. Sou motivada por ambas necessidades, a de desconstruir e a de reconstruir.” Nesta obra, Elizabeth mergulha sua expressão na aventura da água e da representação do elemento líquido, expõe seu significado germinal para a vida na Terra e para o ser humano que nela habita. A artista cria uma rica metáfora dos meios líquidos e de infindáveis desdobramentos líricos. A água não é representada apenas para exprimir um elemento da natureza, uma substância – é território poético onde a vida flui e se renova. É também um modo de definir um lugar pulsante, e Elizabeth Dorazio nos conduz a adentra-lo, para banhar nas suas águas.

Fábio Magalhães
Museólogo e crítico de arte brasileiro, Diretor estatutário do MASP – Museu de Arte de São Paulo, Coordenador do Comitê Cultural do MAM SP – Museu de Arte Moderna de São Paulo, Membro do Conselho da Fundação Bienal de São Paulo

Mysterium esse revelandum por Marie Christiane Seiferth
A instalação intitulada Mysterium esse revelandum tem como objetivo aproximar as pessoas da composição da obra em sua dimensão impressionável. Ao olhá-la em círculos e direcionar o olhar de cima para baixo, descobrindo os seus detalhes, o espectador entra, assim, em um fluxo de pensamentos sobre as diversas questões que ela apresenta. No espaço, vê-se que a sua composição é feita por sobreposições e camadas de folhas sintéticas na escala de cores aquáticas, presas em um suporte, no teto de onde elas caem maleavelmente em pedaços emendados e se espalham sobre um fundo sintético purpúreo, na forma de uma gota respingada sobre a qual gotinhas aparecem salpicadas e pequenos pontos em recortes esparsos. Na composição das cores, as camadas internas têm as mais densas escalas d´água, e as camadas arranjadas em cadeias e fixadas por um fio de nylon, trazem à lembrança uma queda d´água. Na parte externa da obra, pendem transparências em variadas formas de gotas e pingos escorridos. Entre eles encontram-se fragmentos de radiografias cortadas em forma de gotas d´água. Assim, o espectador ganha a visão do interior de um organismo biológico, descobrindo um mundo interno e inacessível. Recortes transparentes, pendendo dos diversos elementos da composição, sugerem, devido a sua estrutura, a cadeia do DNA. Nas transparências, por sua vez, podem ser vistas, esporadicamente, finas linhas desenhadas em vermelho que correspondem às estruturas orgânicas e micro-aquáticas. A composição ativa o olhar do espectador e leva-o a criar, no sentido adoriano, um relacionamento com a obra. Torna a reflexão em uma ação dinâmica e dá visibilidade à nomeação da obra instalada. O título “Mysterium esse revelandum” refere-se à forma latina de expressar uma tarefa a cumprir, o que em português poderia corresponder ao verbo dever ou à expressão idiomática “é para ser “. Então, a instalação com os seus motivos subjacentes quer iniciar a confrontação de cada um com os pensamentos fundamentais sobre os mistérios da vida e da própria existência os quais, segundo o título, devem ser revelados a cada um de nós, ou seja, deveriam ser revelados a cada pessoa. Levando em consideração que cada indivíduo, como sujeito da própria história, deveria se encontrar a caminho da revelação das questões existenciais, a instalação artística transforma-se em um convite ao público para direcionar o olhar para dentro de si, proporcionando, assim, um momento de contemplação e reflexão ativa.

Marie Christiane Seiferth
Pesquisadora/Filosofia-Teologia

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