Elizabeth Dorazio trabalha na fronteira do caos. Ela assume a aleatoriedade como princípio investigativo, dando expressão visual ao dinamismo que reconfigura os sistemas naturais continuamente. Em sua arte, tudo remete ao imprevisível. Ela produz por extração e desvio, por associação e deslocamento. Produz imagens como fenômenos, propondo lugares onde nada é por muito tempo.
A natureza é a matéria prima de Elizabeth Dorazio. Matéria prima no sentido literal, como fibras de palha ou madeira, ou figurado, como imagens. Pelas convenções artísticas, seu trabalho seria classificado como paisagem, gênero em que a representação do lugar é signo da permanência. No entanto, a artista se desvia das convenções. Ela entende a paisagem como espacialidade circunstancial, em que a mutação é inerente aos elementos que a definem.
Desviando-se da paisagem, a artista investiga a natureza num amplo espectro de manifestações, das evidentes às imperceptíveis, como as observadas em microscópios e telescópios. Tais manifestações são representadas por imagens que circulam de várias maneiras. Estão impressas em livros, revistas, publicações científicas, estão na internet ou mesmo no caderno onde a artista costuma desenhá-las sem propósito específico. Dorazio é uma coletora de imagens. Age como a exploradora que esquadrinha o diverso para encontrar o singular, não como a naturalista que busca a regra.
Elizabeth Dorazio escolhe imagens aleatoriamente, as extrai do contexto original com recortes de precisão quase cirúrgica e as desloca para suportes onde são arranjadas em paisagens símiles do real, porém inexplicáveis. A artista opera segundo uma lógica própria, que pressupõe o múltiplo e o multidimensional, que lhe permite conciliar na mesma composição elementos inconciliáveis como a estrutura de um micro-organismo ou o arranjo de uma constelação. Uma obra de Elizabeth Dorazio pode condensar imagens de órgãos humanos, corpos unicelulares, ecossistemas, galáxias ou até fósseis, vestígios de formas de vida que se replicam em cadeias de DNA.
A lógica da artista assemelha-se à lógica do País das Maravilhas, ou melhor, às várias lógicas coexistentes na ficção de Lewis Carrol. Alice se conduz no País das Maravilhas como na sociedade vitoriana, considerando absurdo tudo que lhe é incompreensível. Sua história é uma sucessão de erros e mal-entendidos que seriam evitados se, em vez de uma lógica única, ela usasse as lógicas da Rainha, do Chapeleiro e do Coelho, adequando-as a situações específicas. A história de Alice ganha contornos especulativos na filosofia de Ludwig Wittgenstein, para quem o significado das coisas, palavras, regras e práticas não é fixado por uma lógica única, mas determinado pelo uso contextual, em jogos de linguagem.
Assumir a aleatoriedade como princípio investigativo implica adotar uma lógica aplicável a a diferentes contextos. Implica jogar, não com a linguagem, mas com a imagem. Elizabeth Dorazio é a anti Alice no país maravilhoso que ela concebe em diversos jogos de imagens.
I went on a trip (2020-1), série que dá título a esta exposição, é uma investida no lugar admirável onde reina o acaso, o imprevisível, o aleatório. Nas obras da série, a imagem da artista desponta entre flores e folhagens gigantescas, registrando seu encontro fantasioso com a megaflora extinta há milhões de anos. O visitante da exposição experimenta um encontro semelhante diante da vegetação fragmentada das colagens de On nature (2019-21). Mas a artista proporciona outras maravilhas, como tocar as estrelas perdidas no labirinto de Daedalus (2016) ou sondar as profundezas do oceano nos trabalhos da série Mundi Maritimi (2007-10), intimamente relacionados com os de Organismus Polymorphos (2010-4).
Títulos em grego e latim são uma constante nos jogos imagéticos entre arte e ciência. Neles, Elizabeth Dorazio convida os jogadores a revisar sua lógica. Afinal, sendo o caos inerente à natureza, ele pode se manifestar a qualquer momento. Com as formas instáveis e sobrepostas de Aequilibrium Cosmicum (2010-4), Dorazio põe a ciência em xeque. Mas o xeque-mate é filosófico. Como lembra Heráclito, não nadamos duas vezes no mesmo rio, tudo flui, Panta Rhei (2010-4).
Nesta exposição, trabalhos de várias séries produzidas por Elizabeth Dorazio estão dispostas como figuras de cartas de baralho, invertidas e espelhadas em (alguma) simetria, como no País das Maravilhas. Tudo é jogo. O inesperado é a primeira regra, a única que vale do princípio ao fim.
Magnólia Costa
Curadora