Entrevista com a artista por
Ana Finel Honigman
P: Quando descobriu que era artista?
R: Eu nasci artista. Desde o princípio, me expressava através da imagem. Sou muito produtiva. Em duas décadas, criei mais de 2.500 obras de arte e outras duas décadas ainda não foram catalogadas.
P: Como o seu trabalho evoluiu ao longo da sua carreira?
R: Eu não gostava de sentir que estava vivendo do jeito que já conhecia. Suspeitava que estava levando a vida no Brasil fazendo as mesmas coisas e produzindo o mesmo tipo de arte. Estava preocupada com a perspectiva de me tornar repetitiva. Eu sempre busco novos desafios. Na verdade, o desafio de começar do princípio várias vezes tornou minha vida mais difícil, mas permitiu que eu experimentasse e pesquisasse novas e maiores possibilidades e assim aprendi sobre novas culturas, materiais e formas de expressão.
P: De que forma sua estética artística, preocupações intelectuais e atividade criativa representam suas raízes brasileiras?
R: Acredito que as histórias pessoais e culturais de todos nós sejam transportadas conosco. Grande parte do universo criativo de um artista se desenvolve durante a infância, mas um artista maduro incorpora e articula as novas referências acumuladas durante a vida.
P: Expandindo sua compreensão sobre maturidade artística, quais são os desafios e benefícios específicos de ser uma artista madura e mulher?
R: Ser uma artista mulher nunca me incomodou ou foi um motivo de preocupação. Os benefícios de ser uma artista mais madura são os mesmos de ser uma pessoa madura. Conforme amadurecemos, nos tornamos mais conscientes a respeito de quem somos. Fiquei ainda mais à vontade para resistir às tendências e me inspirar pelo meu próprio imaginário. Nosso mundo privilegia a juventude e o novo. A experiência não é valorizada. Em lugar de construir uma identidade lentamente, baseada em compromissos sólidos, as pessoas seguem seus impulsos em busca de fama e fortuna rápidas. Eu nunca desejei estas soluções rápidas. Agora sou capaz de refletir sobre a minha longa jornada como artista e entender o que foi relevante e o que não foi. Posso dizer com segurança que conquistei um sentimento de realização.
P: Você sente que tem uma rede internacional de colegas suficientemente colaborativa?
R: A maior parte do tempo tenho estado sozinha em minha jornada. Assim como na vida, encontrar os pares é uma ocorrência rara. Sinto que há uma carência de generosidade e de pessoas com o coração verdadeiramente aberto. Encontrar os verdadeiros pares dá trabalho e demanda um longo comprometimento. Eu me mudei muito frequentemente e isto dificultou que eu construísse as raízes necessárias para encontrar meus verdadeiros pares.
P: Poderia descrever as várias influências étnicas em seu trabalho? Sua arte incorpora elementos de tradições clássicas ocidentais bem como tradições africanas e do Oriente Médio. Como estes elementos interagem em sua arte?
R: Tudo no universo é conectado e existe o inconsciente coletivo. Portanto, uso imagens do passado que me influenciaram ou aquelas que eu criei. Às vezes, eu as vejo como em um sonho sem sentido, mas as combino criando harmonia.
P: Poderia dizer de que forma o Brasil incorpora as diferentes heranças e influências culturais à identidade artística regional?
R: Nós tivemos um movimento artístico importante no Brasil na década de vinte chamado “Semana de Arte Moderna”. O movimento se originou de um evento em São Paulo realizado em fevereiro de 1922 que celebrou o modernismo. O “Manifesto Antropofágico”, escrito por Oswald de Andrade, abordava o problema da falta de identidade cultural do Brasil sob o imperialismo europeu. Desde então, absorvemos ainda mais influências culturais estrangeiras. Vamos abordar a comida, por exemplo: adotamos a comida árabe, a japonesa, pratos dos escravos africanos, etc. Embora o português seja uma língua greco-romana, utilizamos palavras tiradas de línguas africanas e da língua árabe. Se gostamos de um nome, não importa qual a origem deste nome e colocamos este nome em nossos filhos, como por exemplo, meu próprio nome. Celebramos rituais católicos misturados com rituais africanos. Os pensadores locais podem combinar vários pensamentos filosóficos, consequentemente, criando integração. Nosso sincretismo mostra uma aceitação cultural de tradições estrangeiras e a liberdade de estarmos abertos para o novo.
P: Qual foi sua motivação para criar um projeto com mulheres beduínas para a sua série Symphoniae?
R: Quando cheguei aos Emirados Árabes Unidos, me perguntei: Que lugar é este? Então, comecei minha pesquisa frequentando as bibliotecas locais para saciar minha curiosidade. Encontrei literatura sobre a região do golfo e examinei livros antigos, de cartografia e vários mapas topográficos. Finalmente, minha pesquisa me levou até a “Associação Geral de Mulheres, Centro de Herança Cultural e Artesanato” (General Women’s Union, Heritage and Craft Center). Esta associação é dedicada a preservar as diferentes técnicas de artesanato desenvolvidas pelas tribos beduínas durante seus esforços para se adaptarem(-se) ao meio ambiente do deserto utilizando apenas os recursos naturais.
P: Esta pesquisa fez com que você refletisse sobre sua própria cultura e história?
R: Sim, me senti uma estrangeira. Me imaginei talvez como os europeus que chegaram no Brasil em 1500. Comecei a refletir sobre o que significa ser um “viajante” em nosso mundo globalizado. Como definimos um “viajante” hoje em dia?
P: Qual foi a conclusão? Como define um “viajante”?
R: Um viajante é alguém que quer fazer uma imersão na cultura local, interagir com as pessoas locais, estando aberto a experimentar o novo. Embora agora possamos viajar pelo mundo com muita mobilidade, espero que não passemos a escutar as mesmas músicas ou usar os mesmos sapatos para que nunca abandonemos nossas tradições e que o mundo permaneça como uma tapeçaria colorida cheia de contrastes, senão tudo ficaria sem graça e uniforme.
P: De que forma o seu trabalho se relaciona com esta descrição de “um viajante”?
R: Há vários ângulos referentes ao universal e ao atemporal que são parte da condição existencial da espécie humana. Meus trabalhos expressam um ponto de vista holístico e não uma visão redutiva.
P: O que lhe trouxe a Dubai? Você tem parentes na região?
R: O engraçado é que meu marido é engenheiro de satélites e acabou vindo trabalhar aqui em Abu Dhabi. Ele é um cientista, uma mente brilhante! Nós dois enxergamos o universo, mas utilizamos perspectivas diferentes.
P: Em minhas experiências como curadora em Dubai e editora de arte em uma revista focada exclusivamente em artistas do Oriente Médio, entendo as razões históricas, religiosas e culturais pelas quais a “abstração caligráfica” domina o cenário artístico da região. De que forma considera que seu trabalho se encaixa nesta tradição e se relaciona com o gosto local?
R: Meu trabalho se encaixa e se relaciona às tradições locais. Embora não seja religioso, ele é voltado para a espiritualidade. Estou interessada na presença humana, no toque humano e na convivência feita de forma lenta e em suas dimensões culturais. Estamos vivendo em um tempo que prefere soluções a curto prazo à perspectiva de longo prazo. Isto está relacionado ao processo de produção, mas também ao valor da presença humana, do movimento, da amizade, do prazer e também do tempo para a filosofia. Acredito que um sentido espiritual dentro do tempo expandido traria harmonia entre a espécie humana, a natureza e o universo.
P: Tem relacionamento com algum Deus ou poder superior? Pratica sua espiritualidade através de alguma forma de oração ou a arte é sua forma de observância espiritual?
R: Creio que uma obra de arte seja em si possuidora de uma energia mágica e acredito que o espiritual exista na arte. Sim, existe um mistério e acredito em um poder superior.
P: Como os materiais e cores de Symphoniae se relacionam a seus trabalhos anteriores?
R: Nos anos 90, eu fazia mosaicos em couro e sobre este animal extinto pintava naturezas mortas vívidas, criando assim uma sobreposição de ideias antagônicas. Em obras posteriores, sobrepunha transparências para criar uma visão mais profunda dentro de um objeto e com isto também criava uma multiplicação de cores. Naquela época, eu utilizava materiais sintéticos e os costurava com finos fios de nylon como, por exemplo, na instalação Mysterium esse revelandum. Atualmente me aproprio do Al Khous, dando continuidade ao diálogo iniciado pelas mulheres beduínas, criando assim um mosaico. Mosaicos fazem parte da tradição greco-romana, da Mesopotâmia e são um elemento decorativo no mundo árabe. Utilizo agora os painéis de palha da Índia, que me remetem ao Muxarabi – Mashrabiya ( ةیبرشم – ( um padrão arquitetônico que o Brasil herdou de Portugal, que, por sua vez, herdou do mundo árabe.
P: Por que escolheu a astrologia como tema conceitual desta série?
R: Me fascina a forma sinuosa espiralada que se move continuamente e de forma gradual em uma curva crescente. Seria como o conhecimento cósmico da evolução individual e coletiva. Na astronomia, a espiral significa a centelha do conhecimento, o entendimento do universo em constante movimento. Espero que os mistérios da nossa existência nos façam refletir sobre o significado da vida. Fica sempre a pergunta: Por que simplesmente não existimos? Isto reflete as angústias sobre nossa própria salvação.
Ana Finel Honigman tem doutorado em História pela Universidade de Oxford. Seus artigos já foram publicados em revistas e jornais como Artforum, Artnet, ArtNews, the New York Times, Texte zur Kunst, Wall Street Journal, bem como em muitas edições internacionais da revista Vogue e publicações semelhantes. A Dra. Finel Honigman foi uma das editoras fundadoras da revista Alef, baseada em Dubai.