BRASILIDADE – ELIZABETH DORAZIO: PINTURAS por Stella Teixeira de Barros

Na pintura de Elizabeth Dorazio oculta-se ao primeiro olhar a dissimulação da textura, o processo de construção e as regras do jogo que a constituem. Obnubilada pela aparência final da obra, a fatura permanece até certo ponto imperceptível, como um segredo que jamais será desvendado completamente.

A organização do fundo parte da tela branca. À ela são sobrepostos recortes de couro, pedaços de formas irregulares que vão se constituir num intricado mosaico agigantado. Da sobreposição das duas camadas, tela e couro, sobrarão apenas reminiscências de alguns veios das junções das peças do quebra-cabeca.

A tinta, sobrepondo-se à esta base dupla, envolve-a e desfaz o acesso pleno ao modo constitutivo que norteou o embasamento da pintura.

Pouco a pouco, ao olharmos a obra atentamente, verificamos que ela se reconstitui como um novo organismo, onde os rastros são sutilmente perceptíveis. As camadas de pintura envolvem em modulações contrastantes a construção bidimensional, e a justaposição de materiais vai se revestir das cores vibrantes e da limpidez das formas grandes e plenas das flores o dos frutos.

Em sua imensidão, flores e frutos exploram as esfuziantes cores matissianas, operando um sentido da natureza inscrito também na herança da Pop Art, pois a imagem mantém-se fria em sua magnitude. Ao mesmo tempo, a pincelada sobre o couro subverte esse congelamento, descortinando novos acordes na unidade da pintura sobre o fundo, que revelam uma acariciante tessitura aveludada.

As manchas e planos de cor são intercalados por um forte contorno que remete aos sulcos veiados das junções dos retalhos de couro, agora quase indetectáveis sob as camadas de pintura. São contornos que não definem nada, não têm função enquanto linhas, pois como as manchas de cores falam por si, são apenas manchas, tênues massas incisivas de cor e textura.

É uma pintura que, explorando as oscilações do plano onde a perspectiva foi abolida, reafirma a figuração com esmero. Corrói a certeza de um ponto de vista privilegiado, e questiona o ato da contemplação, ao se propor ora como recorte frontal da natureza, ora como objeto a ser observado de cima para baixo.

Acrescenta-se a estas “naturezas mortas” um surpreendente e delicado contraponto nas palavras e frases que, muitas vezes, circunscrevem as imagens com parcimônia, ironia e discrição. Do mesmo modo, os desenhos, pequenas notações alimentadas pela experiência do cotidiano, reafirmam a fatura primorosa, ao mesmo tempo que tangenciam uma entonação poética na oscilação suave mas cortante do traço e da fala.

Os signos da escrita operam sobre a linguagem pictórica, desdobrando significados, pois os descompassos da ironia mantêm a obra como energia, num jogo emaranhado e flutuante, como a questionar o que é “sério” ou “não sério”. E nesse sentido é uma fala que se multiplica indefinidamente ao abraçar flores e frutos, como no poema de Drummond: “este verso, apenas um arabesco, apenas um arabesco / em torno do elemento essencial – inatingível /…um arabesco, apenas um arabesco abraça as coisas, sem reduzi-las”.

Stella Teixeira de Barros
Historiadora e critica de arte

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